APANHADO NA REDE

Achei que devia procurar as razões que me levaram a entrar na Net, para mim próprio imprevisíveis e improváveis, tão grato me tem sido sempre esquadrinhar livrarias e alfarrabistas, manusear (acariciar), folhear, ler e anotar livros, encadernar alguns, favoritos, visitá-los periodicamente nas estantes, falar com eles, relê-los com redobrado prazer.


Decidiu-me a ajuda do Paulo Elósegui Barreiros e do Manuel Vieira da Cruz. Na minha vida, ambos têm percursos semelhantes.


O Paulo é filho de Olga Alves, dedicadíssima colaboradora do meu padrasto e do meu filho Miguel. É um empresário com profundo conhecimento deste assustador novo meio.


Ao Manuel conheço-o há mais de 37 anos – desde que comecei a tratá-lo, à irmã, aos irmãos. Fiquei seu amigo e dos pais. Veio a ser também meu editor.


Segui o Paulo e o Manuel no meu consultório e agora sigo os filhos.


Quando, auxiliado por minha mãe e pela Olga, organizei o In Memoriam, pedi ao João Abel Manta, amigo de cinco décadas, que fizesse a capa. Respondeu que a pessoa indicada era o José Brandão. Não o conhecia pessoalmente. Procurei-o no seu atelier e ao fim de uns minutos tinha a sensação de que o conhecia desde sempre. Aceitou. Depois, com a mesma mestria, fez a capa e o design de Vício de Pensar e Do Sótão das Memórias. Hoje, não concebo colaboração alternativa para este empreendimento.

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A verdade é que nunca fui um entusiasta das técnicas que desviam e alienam o homem do seu ancoradouro natural, alterando hábitos primordiais do tempo e do espaço. Depois, a partir de 1987, tudo o que representava progresso tecnológico, que o meu filho Miguel acompanhava com tanto entusiasmo, acrescentava a dor que eu vivia. Hoje, há outras razões para regressar ao presente: tentar impedir que, um dia, tudo isto fique reduzido a pó; respeito pela justiça.


Ao longo destes anos, escrevi livros e artigos e travei batalhas, porque o que escrevia era polémico, não no sentido de provocar guerrilhas mas porque procurava e defendia a verdade. Fazia-o devido a uma necessidade invencível de compreender, pois não há apenas factos, há também interpretações. Fazia-o só, sem o apoio de partidos políticos, seitas religiosas, grupos profissionais ou maçónicos.


Como médico, acusei uma Medicina desumanizada que, amarrada a interesses economicistas, perdeu a sua pureza e a sua independência.


Como cidadão, acusei a passividade da comunidade internacional perante o holocausto anual de centenas de milhões de crianças, a xenofobia, o atropelo dos direitos das mulheres, a intolerância para com as aspirações dos jovens.


Acusei um progresso que esquece a alma, saqueia a natureza, polui o ambiente.


Horroriza-me o poder da televisão que, estimulando baixos vedetismos, retira autenticidade aos comportamentos dos que caem sob o olhar das câmaras, gerando uma embriaguez colectiva de protagonistas que se transcendem e de espectadores que exigem todos os excessos: catástrofes, violência, sangue («Your death is our business»).


Acusei os políticos que associam a verborreia à falta de carácter e hipotecam a inteligência e a ética a interesses inconfessáveis.


Denunciei leis legitimamente votadas e promulgadas que, apesar disso, ferem princípios morais como os atinentes à pena de morte, à prostituição, ao trabalho escravo, à profanação de cadáveres, a gravidezes irresponsáveis.


Fi-lo porque acredito que há princípios fundamentais anteriores aos estados, superiores aos códigos, independentes das igrejas e indissociáveis da pessoa humana a cuja natureza dão substância e para cuja dignidade contribuem.

J.M. RAMOS DE ALMEIDA

Julho de 2006.